Jethro Tull - Aqualung (1971)

Pintura feita em aquarela pelo artista americano Burton Silverman.

Sobre a Capa

A ideia do álbum veio com as fotografias de moradores de ruas às margens do rio Tâmisa que Jennie Frank, primeira esposa de Ian Anderson, tirou para um trabalho do curso de fotografia. Uma das fotos chamou a atenção de Anderson e o inspirou a escrever "Aqualung" junto com Jennie. Para não se envolver com questões de direitos autorais do morador de rua na foto, Burton Silverman foi contratado para dar vida ao personagem através da pintura. E o resultado foi a capa icônica acima.

Burton Silverman em 2020.

Apesar do sucesso da capa, Ian Anderson não teria gostado dela. No livro Jethro Tull: A History of the Band, 1968-2001, de Scott Allen Nollen, Anderson disse:

Esse cara em particular [o da foto de Jennie] tinha algo de desafiador e nobre nele, e, de fato, muito melhor seria ter usado a fotografia dela com a permissão do cara em vez dessa pintura, eu acho, não muito atrativa ou bem feita na capa dianteira... Eu nunca gostei realmente da capa de Aqualung, embora muitas pessoas achem isso terrível. Eu não gostei do fato de que foi feito para se parecer comigo... Terry Ellis [produtor do álbum] queria que fosse um personagem: poderia ser como eu, ou poderia ser como qualquer outro. E eu disse "Ei, veja, isso pode ser perigoso... nós não queremos deixar as pessoas pensando: 'Espere um pouco. Ian Anderson se parece com esse personagem de quem ele diz na capa do álbum algo sobre Deus estar dentro de todos os homens, até mesmo dentro de Aqualung... então Ian Anderson acha que ele é Deus'!" Eu disse "Terry... apenas o faça se parecer com algum homem velho!" Mas eu fui persuadido nisso. Eu sempre me arrependi de ter deixado ser desse jeito.

Contudo, o jornalista Robert Silverman, filho de Burton, desmentiu Anderson ao dizer que a imagem não foi uma tentativa de reproduzi-lo. Na verdade, seu pai tirou fotos de si mesmo nas esquinas de Londres para ter uma noção de como pintar o personagem. Se o leitor prestar bem a atenção, é realmente possível notar as semelhanças dos traços faciais de Burton com os de sua criação, especialmente na capa traseira.

Álbum Conceitual?

Não, de acordo com Ian Anderson em entrevista para a Circus:

Aqualung nunca foi pensado para ser um álbum conceitual, foram os críticos que disseram que ele era. Ao longo da produção dele, eu notei que dois-terços das canções tinham algum tipo de relação com a religião ou com o meu posicionamento sobre a religião, mas eu nunca pretendi que o álbum fosse uma coisa só. Desde então, por causa de Aqualung, eu quis fazer uma gravação que fosse realmente um álbum conceitual.

Evidentemente, a gravação a que Ian Anderson se refere é o álbum Thick as a Brick.

Premissas

A capa traseira do álbum contém o texto da imagem abaixo. Esse texto nos ajuda a compreender com quais premissas Ian Anderson está trabalhando para firmar seu posicionamento em algumas letras de caráter religioso deste álbum.

Em muitas premissas, Anderson faz um jogo de palavras com preceitos da Bíblia conscientemente, demonstrando como na prática os homens deturpam as ideias contidas no livro sagrado em prol de seus próprios anseios.

Premissa 1
No princípio, o Homem criou Deus: e à imagem do Homem ele o criou.

Isso é um jogo de palavras com Gênesis 1:27: "Então Deus criou o homem à sua própria imagem, e na imagem de Deus ele o criou". Anderson inverte a Biblia: não foi Deus que criou o homem, foi o Homem que criou Deus à sua imagem semelhança. Deus portanto é um espelho dos designios desses homens criadores.

Premissa 2
E o Homem deu a Deus uma variedade de nomes, de modo que pudesse ser o Senhor sobre toda a terra quando conviesse ao Homem.

Os criadores de Deus deram origem a várias religiões e denominações de modo a expandir sua influência e ideia sobre Deus por toda a Terra.

Premissa 3
E no sétimo milionésimo dia, o Homem descansou e se encostou pesadamente em seu Deus e viu que isso era bom.

Um jogo de palavras com Gênesis 2:2: "E no sétimo dia Deus finalizou o trabalho que ele tinha feito, e ele descansou no sétimo dia". Depois de muito tempo, os criadores de Deus se acomodaram com sua criação e usufruiram dela.

Premissa 4
E o Homem formou Aqualung do pó da terra, e vários outros semelhantes à sua espécie.

Um jogo de palavras com Gênesis 2:7: "Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e deixou correr em suas narinas o sopro da vida, e o homem se tornou uma criatura viva." Os criadores de Deus deram origem a Aqualung (moradores de rua, miséria, pobreza). Muitas denominações religiosas começaram a incentivar o acúmulo de riquezas, demonizando a pobreza.

Premissa 5
E esses homens inferiores que o Homem fez foram jogados no vazio; e alguns foram queimados; e outros foram colocados à parte de seus semelhantes.

A concepção de nós e eles, de exclusão do diferente, de desumanização de algumas pessoas, começou a ser propagada no seio religioso, ressignificando a ideia bíblica de amor ao próximo.

Premissa 6
E o Homem se tornou o Deus que ele criou e com seus milagres governou toda a terra.

E assim a religião andou de mãos dadas com os poderosos e juntos promoveram toda a sorte de segregação entre os humanos, para não dizer subjugação e eliminação, como foi o caso do processo colonialista e catequizador dos povos nativos dos continentes colonizados.

Premissa 7
Mas à medida em que todas essas coisas aconteciam, o Espírito que fez com que o homem criasse seu Deus viveu no interior de todos os homens: até mesmo no interior de Aqualung.

O Espírito em letra maiúscula é uma referência ao Espírito de Deus ou Espírito Santo. Esse espírito exerce a presença e poder do verdadeiro Deus em todos os homens, habitando no interior dos homens. Ele habita no interior tanto dos homens que criaram seu Deus quanto dos homens subjugados por essa criação.

Premissa 8
E o homem não viu isso.

O homem, em letra minúscula, i.e., os subjugados, não percebeu que o mesmo Espírito Santo que habita nos criadores de Deus também habita no interior de todos os outros homens.

Premissa 9
Mas pelo amor de Cristo, é melhor ele começar a ver.

Isso é um apelo para que os homens comecem a perceber que as religiões hegemônicas não passam de criações do próprio homem, e que Deus está dentro de cada um de nós, e cada um de nós se relaciona com Deus de uma maneira diferente, muitas vezes não convencional ou não aceita pelos dogmas ou preceitos das religiões existentes. É hora de desnaturalizar a ideia de que as religiões são a única maneira de interpretar Deus.

Aqualung

Ian Anderson / Jennie Frank
Sitting on a park bench
Eyeing little girls with bad intent

Snot's running down his nose
Greasy fingers, smearing shabby clothes
Hey, Aqualung

Drying in the cold sun
Watching as the frilly panties run
Hey, Aqualung

Feeling like a dead duck
Spitting out pieces of his broken luck
Oh, Aqualung

Sun streaking cold
An old man wandering lonely
Taking time the only way he knows

Leg hurting bad
As he bends to pick a dog-end
He goes down to the bog and warms his feet

Feeling alone
The army's up the road
Salvation a la mode and a cup of tea

Aqualung, my friend
Don't you start away uneasy
You poor old sod
You see, it's only me

Do you still remember
December's foggy freeze
When the ice that clings on to your beard
Was screaming agony?

And you snatch your rattling last breaths
With deep-sea diver sounds
And the flowers bloom like madness in the spring
Sentando num banco de parque
Olhando garotinhas com más intenções

Ranho escorrendo de seu nariz
Dedos engordurados, roupas esfarrapadas
Ei, Aqualung

Secando no sol frio
Observando o babado das calcinhas ao vento
Ei, Aqualung
   
Sentindo-se como um derrotado
Resmungando sobre sua má sorte
Ô, Aqualung

O sol demarcando o frio
Um velho vagando solitário
Ocupando o tempo da única maneira que sabe

As pernas doendo bastante
Conforme ele se encurva para pegar a ponta de cigarro
Ele vai ao atoleiro e aquece seus pés

Sentindo-se sozinho
O exército está na rua
Salvação em estilo e uma xícara de chá

Aqualung, meu amigo
Não comece a se inquietar
Pobre e velho miserável
Você vê, é apenas eu

Você ainda se lembra
Da geada enevoada de dezembro
Quando o gelo que se agarra à sua barba
Era uma agonia de se gritar?

E você segura seus últimos suspiros de vida
Com sons de mergulho no fundo do mar
E as flores florescem como loucura na primavera

Aqualung, para além de um personagem, é a representação de moradores de rua desprezados pela sociedade, especialmente os moradores de rua que agem como espíritos livres e são indomesticáveis para a convivência social. A existência de moradores de rua é resultante de um processo histórico, cultural e econômico. A Igreja, por meio de suas instituições, contribuiu significativamente na tentativa de mantê-los segregados, porém domesticados à sociedade. Aqualung, no entanto, é o símbolo do fracasso dessa tentativa, e do fracasso civilizatório no geral.

A canção inicia com o riff pesado e marcante na guitarra e com vocais agressivos. Os primeiros versos descrevem um Aqualung repugnante. Aos olhos da sociedade, ele não passa de um velho nojento e pervertido. Ele é o retrato da capa dianteira deste álbum. Eis que então o riff pesado dá lugar a acordes brandos no violão, e o vocal se suaviza. A vida de Aqualung longe do olhar discriminador da sociedade é contada. Ele é um velho solitário e amargurado. Ele é o retrato da capa traseira deste álbum.

Eventualmente, Aqualung é auxiliado por um exército que corre as ruas. Isso é uma referência ao Exército da Salvação, uma denominação cristã protestante e uma das maiores instituições de caridade no mundo. Foi fundada em 1865 em Londres, no auge da Revolução Industrial. Seus membros voluntários são chamados de soldados. E o lema da organização, cunhado pelo seu fundador William Booth, são os três S: "primeiro a sopa, depois o sabão e por fim a Salvação". Essa é a tentativa da Igreja de domesticação dos seres vistos como bárbaros pela sociedade.

Note que depois dos versos sobre o Exército da Salvação, a letra deixa de narrar a história em terceira pessoa para se referir a Aqualung em primeira pessoa. Essa é uma mudança importante na música. Primeiro, o Espírito Santo fala diretamente com Aqualung, resgatando as premissas 8 e 9 desse álbum. Depois, ele relembra como foi a morte de Aqualung. Possivelmente, Aqualung não aguentou o inverno de dezembro e se jogou no rio Tâmisa, morrendo afogado. E então o eu-lírico encerra dizendo que "as flores florescem como loucura na primavera".

Esse último verso da música é uma possível referência ao poema A little madness in the spring, da poetisa americana Emily Dickinson. No poema, uma pequena loucura na primavera é dita ser saudável até mesmo para o rei. A loucura aqui representa a imprevisibilidade da natureza na primavera. Ou seja, ainda que o rei diga que a natureza lhe pertence, nem mesmo ele pode controlá-la. E é saudável que assim seja. No contexto dessa música, as flores florescendo como loucura na primavera é uma metáfora para outros Aqualungs surgindo como espíritos livres, indomesticáveis e incontroláveis pela sociedade. E, tal como o poema de Dickinson, é bom que assim seja para que não criemos uma horda de seres inferiorizados, subjugados e desumanizados pela sociedade.

Cross-Eyed Mary

Ian Anderson
Who would be a poor man,
a beggar man, a thief
If he had a rich man in his hand?

And who would steal the candy
from a laughing baby's mouth
If he could take it from the money man?

Cross-eyed Mary
goes jumping in again
She signs no contract
but she always plays the game

She dines in Hampstead Village
on expense accounted gruel
And the jack-knife barber
drops her off at school

Hey, laughing in the playground
gets no kicks from little boys
Would rather make it with a letching gray, yeah

Or maybe her attention
is drawn by Aqualung
Who watches through the railings as they play

Cross-eyed Mary
finds it hard to get along
She's a poor man's rich girl
and she'll do it for a song

She's a rich man stealer
but her favour's good and strong
She's the Robin Hood³ of Highgate
helps the poor man get along
Quem seria um pobre,
um mendigo, um ladrão
se tivesse um ricaço na palma da mão

E quem roubaria o doce
da boca de um bebê sorridente
se pudesse tirá-lo do homem endinheirado

Maria Vesga
cai dentro novamente
Ela não assina contratos,
mas sempre joga o jogo

Ela janta na Vila Hampstead
às custas de papinha
E o aborteiro
a larga na escola

Ei, rindo no pátio
sem interesse em garotinhos
Prefere fazer com um grisalho pervertido, sim

Ou talvez sua atenção
seja atraída por Aqualung
Que observa pelas grades conforme ela atua

Maria Vesga
acha difícil se sentir bem
Ela é a menina rica de um pobretão
e vai fazer por uma micharia

Ela é a ladra de um ricaço,
mas sua causa é boa e forte
Ela é o Robin Hood de Highgate
ajuda o pobre a se sentir melhor

Assim como na música anterior, Maria Vesga também é uma personagem. Embora a leitura mais aparente e superficial da letra mostre que Maria Vesga é a representação de uma prostituta que atende tanto aos ricos por dinheiro quanto aos pobres por compaixão, uma leitura mais profunda da letra pode nos levar a interpretar Maria Vesga como uma metáfora para a Igreja. A letra traz alguns indícios que corroboram essa interpretação.

Primeiro, a escolha do nome Maria. Sabendo da inclinação do álbum à temática religiosa, não podemos ignorar detalhes como esse. Embora a origem exata do nome Maria seja incerta, há duas origens muito aceitas: Myriam, do hebraico, que significa "senhora soberana, vidente"; e Maryáh, do sânscrito, que significa "a pureza, a virtude, a virgindade". Dentro do cristianismo, Maria, na qualidade de mãe de Cristo, representa o amor materno que a Igreja tenta reproduzir ao aproximar os fiéis da comunhão com Cristo. Ela é portanto o modelo ou o ideal para a Igreja. A Virgem Maria é também o socorro do povo simples, dos religiosamente afastados e daqueles que sofrem, pois Ela educa as pessoas a viverem na fé em todas as situações da vida.

Segundo, por que Maria é retratada como vesga? Note que isso não tem a ver com o fato de Maria não fazer distinção entre pessoas pela sua classe social. Maria teria de ser cega, não vesga, tal como a Justiça é retratada. Contudo, a escolha pela vesguice de Maria é uma metáfora para como a Igreja perdeu o foco sobre seus próprios fundamentos. A Igreja perdeu a pureza de Maria ao "se prostituir", enriquecendo às custas de agradar os ricos, conforme veremos a seguir.

A música se inicia com um instrumental medieval preparando o terreno para uma letra altamente religiosa. Novamente, os riffs pesados e os vocais agressivos retornam para descrever Maria Vesga. É interessante notar como os riffs pesados e os vocais agressivos nesse álbum aparecem em momentos cuja letra destaca o fracasso civilizatório da sociedade. Mas bem, Maria é descrita como uma aproveitadora dos pecados dos ricos. Ela gosta especialmente dos pecadores velhos porque o sentimento de culpa, a busca por redenção e expiação são maiores dentre eles do que dentre os jovens. E se eles puderem pagar para se expiar, tanto melhor. O enriquecimento das igrejas, embora não fosse algo premeditado no surgimento do cristianismo, tornou-se com o tempo algo tolerado e, em algumas denominações, até estimulado.

Maria Vesga precisa ir aos bairros luxuosos, como Hampstead em Londres, pois a alta sociedade não vai querer compartilhar o mesmo ambiente dos pobres. Mesmo assim, Maria Vesga mantém uma aparência de não ostentação para que os ricos não pensem que a instituição está lucrando em cima de suas contribuições. E, para haver contribuições, é preciso agradá-los, expiando e perdoando seus pecados. Ao mesmo tempo, Maria Vesga atende aos pobres, acolhendo-os como nenhuma outra instituição faria e certificando-se de que eles se mantêm fiéis aos seus valores.

A letra dessa música representa em suma a perda de foco da Igreja Cristã em relação aos preceitos bíblicos, permitindo lucrar em cima da expiação dos pecadores. Maria, enquanto modelo da Igreja, envesgou-se e prostituiu-se aos anseios sórdidos de alguns endinheirados em troca de poder e riqueza.

Cheap Day Return

Ian Anderson
On Preston platform
Do your soft shoe shuffle dance
Brush away the cigarette ash 
that's falling down your pants

And you sadly wonder: 
Does the nurse treat your old man the way she should
She made you tea asked for your autograph 
What a laugh
Na plataforma de Preston
O seu leve calçado dança aleatoriamente
Tirando a cinza de cigarro
que está caindo de suas calças

E você tristemente se pergunta:
A enfermeira trata seu velho da maneira que deveria
Ela te fez um chá e te pediu um autógrafo
É brincadeira

Essa canção é sobre um evento pessoal do Ian Anderson, envolvendo o pai dele que estava enfermo num hospital em Blackpool. Numa entrevista a Disc & Music Echo em 1971, Anderson disse:

"Cheap Day Return" fala sobre o dia em que eu visitei meu pai no hospital em Blackpool. Eu peguei um trem às nove, fiquei quatro horas viajando, quatro horas com o meu pai e quatro horas para voltar novamente. Era uma canção longa principalmente sobre viagem nos trilhos, mas a seção gravada é sobre visitar o meu pai. É uma canção genuína.

Na época, Ian Anderson morava em Londres e precisou viajar a Blackpool para visitar seu pai severamente adoecido no hospital. A viagem de volta por trem entre essas duas cidades não é direta: você precisa pegar um trem de Blackpool a Preston para então chegar na linha Glasgow - Londres. A letra trata do momento em que Anderson aguardava na plataforma de Preston. Ele indaga se o pai estava recebendo o tratamento adequado no hospital, especialmente depois de ver como a enfermeira se portou quando esteve por lá.

Mother Goose

Ian Anderson
As I did walk by Hampstead Fair
I came upon Mother Goose
So I turned her loose
She was screaming

And a foreign student said to me
Was it really true
there elephants and lions too
in Picadilly Circus?

Walked down by the bathing pond 
to try and catch some sun
Saw at least a hundred schoolgirls 
sobbing into handkerchiefs as one

I don't believe they knew 
I was a schoolboy

And a bearded lady said to me
If you start your raving
and your misbehaving
You'll be sorry

Then the chicken-fancier came to play
With his long red beard
and his sister's weird
she drives a lorry

Laughed down by the putting green 
I popped 'em in their holes
Four and twenty laborers were laboring 
and digging up their gold

I don't believe they knew 
that I was Long John Silver

Saw Johnny Scarecrow make his rounds
in his jet-black 'mac
Which he won't give back
Stole it from a snowman
Conforme eu andava pela Feira de Hampstead
Eu trombei com uma Mamãe Gansa
Daí eu sai dela
Ela estava gritando

E um estudante estrangeiro me disse
Se era realmente verdade
Que havia elefantes e leões também
No "Circo" de Picadilly?

Andei pela fonte de banho 
para experimentar e pegar algum sol
Vi ao menos cem estudantes 
soando seus lenços juntas

Eu não acreditei que elas sabiam
Que eu era um estudante

E uma senhorita de barba me disse
Se você começar com seu delírio
E o seu mal comportamento
Você se arrependerá

Então o bichinha veio brincar
Com sua barba comprida ruiva
E a estranha da irmã dele
Ela dirige um caminhão

Ri perto do gramadinho 
que eu enfiei no buraco deles
Vinte e quatro trabalhadores estavam trabalhando 
e escavando pelo ouro deles

Eu não acreditei que eles sabiam
Que eu era Long John Silver

Vi Johnny Scarecrow fazer suas rondas
com sua jaqueta toda escura
a qual ele não vai devolver
roubou-a de um boneco de neve

Essa canção é uma alegoria de cenas absurdas e surreais imaginadas por Anderson. Embora pareça mais uma canção sem conexão com a temática religiosa, o uso do surrealismo por Anderson pode não ser ao acaso. O surrealismo foi um movimento artístico de contestação da racionalidade humana no início do século XX. A arte surrealista é conhecida por romper com a busca pelo sentido das representações. Surreal é o que está para além do real. É mais que o real porque transcende a compreensão racional e se relaciona com a mente inconsciente, com o imaginário e com o absurdo. A produção artística é espontânea, experimental, descolada da moralidade, desobrigada de ser verossímil e despreocupada com a recepção estética. Uma de suas características mais marcantes é o estranhamento ocasionado pelo uso de elementos aparentemente sem relação entre si e em lugares aos quais não pertencem. Talvez o surrealismo escolhido aqui pelo Anderson seja a sua linguagem de contestação perante a moralidade religiosa e às representações criadas pelo Homem de h maiúsculo das premissas do álbum.

A letra possui algumas referências, a começar pelo título. Mamãe Gansa é o arquétipo da mulher do interior que reúne as crianças em torno de si para contar histórias fantasiosas passadas de geração em geração. Essa figura ficou mundialmente conhecida com a publicação de Contes de Ma Mère L'Oye (1695), do escritor francês Charles Perrault. Veja a capa do livro.

Picadilly Circus, apesar do que o nome possa aparentar, não tem nada a ver com circo. O termo "circus" nesse caso significa local onde há um cruzamento de ruas. Esse sentido da palavra é usado apenas pelos ingleses. Trata-se de uma praça famosa em Londres conhecida historicamente por servir como atração turística e como ponto de encontro entre as pessoas. Ela se destaca pelos letreiros de neon em alguns edifícios nos entornos e, principalmente, pela Fonte Memorial de Shaftesbury. A fonte exibe uma estátua de Anteros, o deus grego do amor retribuido, apesar de parte dos ingleses acreditar, erroneamente, ser uma estátua de Eros. Veja uma foto da praça tirada em 1970.

Long John Silver é um personagem do livro "Treasure Island" (1883), do escritor escocês Robert Louis Stevenson. Ele é o antagonista da história, um pirata sem a perna esquerda que usava muletas e tinha um papagaio no ombro. Esse livro ajudou a popularizar a caricatura que temos hoje dos piratas. Veja a capa do livro.

Johnny Scarecrow é um personagem vilanesco da DC Comics. Ele era um antigo professor de psicologia que se tornou o "Mestre do Medo", usando várias toxinas experimentais e táticas psicológicas para explorar o medo e a fobia de suas vítimas e adversários, especialmente a do Batman. Veja a capa da HQ #189 (1967) em que o vilão aparece em destaque.

Wond'ring Aloud

Ian Anderson
Wond'ring aloud
How we feel today
Last night sipped the sunset
My hand in her hair

We are our own saviours as we start
both our hearts beating life
Into each other

Wond'ring aloud
Will the years treat us well
As she floats in the kitchen
I'm tasting the smell, yeah

Of toast as the butter runs
Then she comes, spilling crumbs on the bed
And I shake my head

And it's only the giving that makes you 
what you are
Pergunto-me em voz alta
como nos sentimos hoje
A noite passada embebeu o pôr-do-sol
Minha mão no cabelo dela

Nós somos nossos próprios salvadores quando começamos
ambos a bater nossos os corações
um no outro

Pergunto-me em voz alta
se os anos vão nos tratar bem
à medida que ela anda pela cozinha
eu estou saboreando o cheiro, sim

Da torrada conforme a manteiga derrete
Então ela vem, derramando farelos na cama
E eu balanço minha cabeça

E é apenas a dádiva que faz de você
o que você é

Essa é uma canção de amor, tocada com muito esmero. Anderson mostra que o sentido da vida está em amar e ser amado. E o amor está nos pequenos momentos da vida. É curioso uma canção que evoca a fraternidade preceder "Up to me", uma canção que evoca justamente o contrário: o egoísmo e o individualismo. Talvez Anderson esteja tentando nos mostrar os altos e baixos da convivência em sociedade.

Up to Me

Ian Anderson
Take you to the cinema
And leave you in a Wimpy Bar
You tell me that we've gone too far
Come running up to me

Make the scene at Cousin Jack's
Leave him to put the bottles back
Mends his glasses that I cracked
Well that's one up to me

Buy a silver cloud to ride
Pack a tennis club inside
Trouser cuffs hung far too wide
Well it was up to me

Tire's down on your bicycle
Your nose feels like an icicle
The yellow fingered smoky girl
Is looking up to me

Well I'm a common working man
With a half of bitter-bread and jam
And if it pleases me I'll put one on you man
When the copper fades away

The rainy season comes to pass
The day-glo pirate sinks at last
And if I laughed a bit too fast
Well it was up to me
Levo você para o cinema
e lhe deixo num Wimpy Bar
Você me diz que fomos longe demais
Vem logo pra mim

Faço uma cena no estabelecimento do Primo Jack
Deixo ele colocar as garrafas de volta
Ele remenda os óculos que eu quebrei
Bem, essa é por minha conta

Comprar um nuvem de prata para dirigir
Empacotar uma raquete de tênis dentro
Bainha da calça bem larga
Bem, isso era para mim

O pneu arreado na sua bicicleta
Seu nariz parece um sincelo
A garota fumante de dedos amarelados
está olhando para mim

Bem, eu sou um trabalhador comum
com meio pão amargo e presunto
e se for do meu agrado eu vou pregar uma peça em você cara
quando o policial vazar

A estação chuvosa está de passagem
O pirata luminoso finalmente afunda
E se eu ri um pouco rápido demais
Bem, isso foi da minha conta

A letra em primeira pessoa, e estruturada em cenas diversas, é destinada a caricaturar parte da classe média inglesa, especialmente os indivíduos que se destacam pela sua visão de mundo individualista e pelas suas ações sociais tomadas pelo egoísmo. Esse arquétipo de indivíduo culpa os outros pelos seus reveses da vida, é incapaz de ser empático e almeja ou procura ostentar um padrão de vida que não condiz com sua realidade.

A letra possui algumas referências dignas de nota. Wimpy Bar, por exemplo, foi uma hamburgueria popular na Inglaterra nos anos 70. A rede de fast food Wimpy se manteria popular até a chegada do McDonald's no mercado inglês em 1974. Veja uma foto da fachada desse estabelecimento em 1972. Levar uma menina ao cinema e depois ao Wimpy Bar era o cavalheirismo da época, e o eu-lírico esperava em contrapartida conquistar rapidamente a menina.

Primo Jack é um nome usado para se referir aos emigrantes, especialmente mineradores, da Cornualha na Inglaterra. Os córnicos eram conhecidos pelo clanismo, de modo que eles favoreciam trabalhadores emigrantes do próprio clã em detrimento dos outros. E por alguma razão eles sempre tinham um primo Jack que chegava para trabalhar por indicação. Isso despertava inveja, ciúmes e até ódio de quem não era do clã por parecer que cada cargo na mina sempre estava reservado a um outro "primo" da Cornualha. Dai vem talvez a irritação do eu-lírico com o Primo Jack em seu estabelecimento.

Silver Cloud é o modelo de um carro de luxo da fabricante rolls-royce. Ostentar um rolls-royce e praticar tênis são padrões de vida incomuns à classe média inglesa.

My God

Ian Anderson
People what have you done?
Locked Him in His golden cage
Made Him bend to your religion
Him resurrected from the grave

He is the God of nothing
If that's all that you can see
You are the God of everything
He's inside you and me

So lean upon Him gently
And don't call on Him to save
You from your social graces
And the sins you used to waive

The bloody Church of England
In chains of history
Requests your earthly presence
At the vicarage² for tea

And the graven image you know who
With his plastic crucifix - He's got Him fixed
Confuses me as to who and where and why
As to how he gets his kicks

Confessing to the endless sin
With endless whining sounds
You'll be praying 'til next Thursday
To all the gods that you can count
Pessoal, o que vocês fizeram?
Trancaram Ele em Sua gaiola dourada
Fizeram Ele se curvar à sua religião
Ressuscitaram Ele da sepultura

Ele é o Deus do nada
Se isso é tudo o que vocês conseguem ver
Vocês são o Deus de tudo
Ele está dentro de você e de mim

Então se curve a Ele gentilmente
E não chame Ele para te salvar
das suas graças sociais
e dos pecados que você costumava renunciar

A Igreja sangrenta da Inglaterra
nas cadeias da história
requer a sua presença terrena
no vicariato para o chá

E a imagem gravada de você sabe quem
com seu crucifixo de plástico - Eles O consertaram
Confunde-me quanto a quem, onde e por que
quanto a como ele se diverte

Confessando sobre um pecado interminável
com sons intermináveis de choro
Você estará rezando até a próxima quinta
a todos os deuses que puder contar

Essa música inicia a segunda parte do álbum. Todas as faixas da segunda parte do álbum tem, em alguma medida, uma ligação com a temática religiosa. Sobre isso, Ian Anderson esclareceu em entrevista à Disc & Music Echo em 1971:

Todas as canções do lado dois de alguma maneira lidam com o conceito de Deus, de um ponto de vista pessoal. "My God", a primeira faixa, não é uma canção contra Deus, ou contra a ideia de Deus, mas é contra Deuses e a igreja hipócrita do establishment; é uma crítica do Deus que eles escolhem adorar. É muito desagradável para mim que as crianças sejam levadas a seguir o mesmo Deus de seus pais. Deus é a ideia abstrata que o Homem escolhe adorar; ele não tem de adorar. Eu digo que ele tem apenas de ser reconhecido. As crianças são levadas a serem judias, católicas ou protestantes apenas pelo acidente do nascimento. Eu acho que isso é algo presunçoso e imoral. A religião produz uma linha divisória entre os seres humanos e isso é errado. Eu acho muito errado que nós sejamos doutrinados na escola com um conjunto de ideias religiosas. Deveria caber a você pensar e tomar sua própria decisão.

A música começa com dedilhados e vocais melancólicos. O eu-lírico se mostra estarrecido com o Deus criado pelos Homens. Ele fala diretamente a esses criadores com sensatez. Ele pontua que esse Deus criado e submisso à religião forjada por esses Homens é um Deus vazio. O verdadeiro Deus habita dentro de cada homem, reforçando as premissas 8 e 9 do álbum. A música fica pesada quando o eu-lírico começa a dar sermão a esses Homens, especialmente quando orienta que os Homens não chamem por Deus para salvá-los de seus pecados.

A letra então cita a sangrenta Igreja da Inglaterra. Essa é uma referência de significado forte. A Igreja da Inglaterra é anglicana. O anglicanismo é uma religião forjada pelo rei inglês Henrique VIII para poder se divorciar de Catarina de Aragão, sua primeira esposa, após ficar claro a ele que ela seria incapaz de lhe prover um filho homem. Como a autoridade católica à época havia se recusado a desfazer o casamento por esse motivo, o rei, pressionando o parlamento inglês com o seu poder, conseguiu distituir o poder do papa no território inglês, tornando ele próprio o Chefe da Igreja e fundador do anglicanismo. Essa nova religião emergiu com forte influência nas ideias calvinistas propagadas pela Europa por ocasião da Reforma Protestante.

Quando Henrique VIII morreu, o primeiro na linha de sucessão era Eduardo VI, o único filho homem vivo e fruto do relacionamento com Joana Seymour, sua terceira esposa. O rei Eduardo morreria precocemente aos 15 anos por conta de uma doença, mas ele chegou a fazer uma grande Reforma Protestante na Inglaterra, abolindo de vez o catolicismo do território inglês. E, sabendo de sua morte iminente, ele tentou desesperadamente colocar um sucessor diferente de Maria, filha mais velha de Henrique VIII com Catarina de Aragão, pois ele sabia que Maria era fortemente católica. No entanto, após a morte precoce do rei, Maria reuniu apoio suficiente para ser a sucessora. Toda essa história grosseiramente relatada aqui foi para explicar o por quê do "sangrento" na letra da música. Com Maria I na condição de rainha, iniciou-se uma perseguição aos protestantes. E a rainha era tida como perversa e sádica com os seus opositores. Ela recebeu a alcunha histórica de Maria Sangrenta em razão disso.

Na letra, a sangrenta Igreja da Inglaterra requisita sua presença para o vicariato. Essa é uma crítica sobre como a religião historicamente se impôs sobre o livre arbítrio das pessoas, de modo a transmitir uma única e inquestionável verdade sobre Deus. E nos dias de hoje a moralidade religiosa ainda condiciona em grande parte o livre arbítrio dos indivíduos.

Um interlúdio com cantos gregorianos interpreta a cena do chamamento ao vicariato. Na sequência, a letra trata do crucifixo de Cristo, uma referência direta ao catolicismo. O eu-lírico diz que ele foi consertado. Possivelmente, ele está falando da Contrarreforma Católica. As indagações na letra sobre quem, onde, por que e como ele se diverte tem a ver com o contato que os jovens têm com a religião. O Deus mostrado pela religião é uma entidade em abstrato, em grande parte desconexa à realidade dos jovens. A referência é em relação aos jovens porque Ian Anderson já deixou claro sua preocupação em incutir a religião na cabeça das crianças como um ensinamento indispensável, mas que acaba fracassando em tocá-las espiritualmente.

Os últimos versos da música resgatam uma ideia já abordada em "Cross-Eyed Mary". A confissão, sacramento típico da Igreja Católica - e também de algumas comunidades anglicanas -, é o mecanismo fundamental para engajar as pessoas aos dogmas da Igreja. Se você peca, você ainda pode obter a salvação, contanto que confesse seus pecados e se redima pelo que fez. Assim a Igreja administra a massa de pessoas que desejam confessar seus pecados em busca da salvação. Como diz a letra, essas pessoas são capazes de rezar a tantos deuses quanto puderem contar para terem seus pecados - intermináveis, diga-se - perdoados.

Hymn 43

Ian Anderson
Our Father high in heaven 
smile down upon your son
Who is busy with his money games 
his women and his gun 
Oh Jesus save me

And the unsung western hero
he killed an Indian or three
And then he made his name in Hollywood 
to set the white man free 
Oh Jesus save me

If Jesus saves
well he better save himself
From the gory glory seekers 
who use his name in death
Oh Jesus save me

Well I saw him in the city, 
and on the mountains of the moon
His cross was rather bloody, 
and he could hardly roll his stone 
Oh Jesus save me
Nosso Pai acima nos céus
sorri diante de seu filho
o qual está ocupado com seus jogos de dinheiro
sua mulher e sua arma 
Ó Jesus me salve

E o herói ocidental desconhecido
Ele matou um ou mais índios
e então ele fez seu nome em Hollywood
para libertar os homens brancos 
Ó Jesus me salve

Se Jesus salva
bem é melhor ele salvar a si mesmo
dos perseguidores sanguinários da glória 
que usam seu nome na morte
Ó Jesus me salve

Bem eu o vi na cidade
e nas montanhas da lua
Sua cruz estava cheia de sangue
e ele mal podia rolar sua pedra 
Ó Jesus me salve

Nessa música, Ian Anderson ironiza o modo que as pessoas se escudam no nome de Jesus para se livrarem dos pecados bíblicos cometidos. A primeira ironia é o Homem pensar que agrada a Deus quando obtém dinheiro, mulher e arma. A segunda ironia é o Homem colonizador pensar que agrada a Deus ao se livrar da culpa do genocídio aos povos nativos, recontando a história do seu massacre nos filmes e vendendo ao mundo sua imagem de herói. A terceira ironia é o Homem pensar que agrada a Deus ao justificar a necessidade da guerra em nome da glória.

Nos últimos versos, a letra se volta à primeira pessoa. O eu-lírico relata que viu o crucifixo tanto na cidade quanto nos lugares mais distantes (significado da expressão "mountains of the moon"). A cruz estava cheia de sangue e Jesus mal podia rolar sua pedra. Jesus é representado como alguém que foi crucificado pelos pecados dos homens. O rolamento da pedra tem a ver com o mito de Sísifo. Na mitologia grega, Sísifo era um camponês astuto que recebera uma punição exemplar dos deuses por enganar e lesar as pessoas e por desacreditar dos deuses: rolar diariamente uma pedra montanha acima até o topo. Só que chegando ao topo, o cansaço promovido pela fadiga faria a pedra rolar novamente até o chão e no outro dia ele deveria começar tudo de novo e assim eternamente.

Dessa forma, Sísifo, que era o homem mais astuto e perspicaz em meio aos seus semelhantes, foi punido pelos deuses com uma atividade repetitiva e interminável, ofuscando todas as suas qualidades. O Jesus crucificado é tido como a salvação dos homens, mas, ao assumir os pecados dos homens, Ele se torna tal como Sísifo: incapaz de ascender ao reino dos deuses. A salvação representada pela cruz - e por isso ironicamente a letra repete ao final de cada estrofe "Ó Jesus me salve" - é o subterfúgio criado pelos homens para aliviar sua culpa pelos pecados.

Slipstream

Ian Anderson
Well the lush separation unfolds you
And the products of wealth
Push you along on the bow wave
Of their spiritless undying selves
And you press on God's waiter your last dime
As he hands you the bill

And you spin in the slipstream
Tideless, unreasoning
Paddle right out of the mess
And you paddle right out of the mess
Bem a distinção da luxúria se revela a você
e os produtos da riqueza
lhe empurram na onda
de seres imortais e sem espírito
E você persuade o servo de Deus com seu último centavo
assim que ele lhe entrega a conta

E você gira na correnteza
sem maré, sem razão
rema para fora da confusão
e você rema para fora da confusão

Sobre essa canção, Ian Anderson disse a Disc & Music Echo em 1971:

Slipstream é uma canção sobre morrer. Não significa que é o fim do mundo, mas dá uma pista sobre o pós-vida. Tem um verso nela, "E você rema para fora da confusão". É breve e ao ponto, liricamente e musicalmente.

Assim como aconteceu com Aqualung, o despertar espiritual para o que realmente importa nessa vida só acontece depois da morte a muitas pessoas. Essa breve e poética canção elucida isso. Desde o nascimento, o caminho da luxúria se coloca como uma opção satisfatória, impulsionada pelos produtos da riqueza, da vida material. E a partir dai você passa viver uma vida desespiritualizada e sempre em busca de algum sentido. Até que chega a morte e você percebe que viveu uma vida sem sentido. Diante da verdade, você para de se perder e rema para fora da confusão, isto é, você se desprende dos vícios mundanos e passa a ascender espiritualmente.

Locomotive Breath

Ian Anderson
In the shuffling madness
Of the locomotive breath
Runs the all-time loser
Headlong to his death

Oh, he feels the piston scraping
Steam breaking on his brow
Old Charlie stole the handle
And the train it won't stop oh no way to slow down

He sees his children jumping off
At the stations one by one
His woman and his best friend
In bed and having fun

Oh, he's crawling down the corridor
On his hands and knees
Old Charlie stole the handle
And the train it won't stop going - No way to slow down

He hears the silence howling
Catches angels as they fall
And the all-time winner
Has got him by the balls

Oh, he picks up Gideon's bible
Open at page one
I think God he stole the handle
And the train it won't stop going - No way to slow down
Na loucura desordenada
do sopro da locomotiva
corre o perdedor de todos os tempos
precipitadamente para a sua morte

Ó, ele sente o pistão raspando
o vapor batendo em sua testa
O velho Charlie roubou a manivela
e o trem não vai parar - ó não há jeito de desacelerar

Ele vê seus filhos pulando fora 
nas estações um a um
Sua mulher e seu melhor amigo 
na cama se divertindo

Ó, ele está rastejando pelo corredor 
com suas mãos e joelhos
O velho Charlie roubou a manivela 
e o trem não vai parar - não há jeito de desacelerar

Ele escuta o silêncio uivante 
e nota os anjos à medida que caem
E o vencedor de todos os tempos 
o toma sob controle

Ó, ele pega a bíblia de Gideão
e abre na página um
Eu acho que Deus, ele roubou a manivela 
e o trem não vai parar - não há jeito de desacelerar

Essa música aborda a inevitabilidade da morte, contrastando as teorias do criacionismo e do evolucionismo. A locomotiva correndo desordenada é uma metáfora para a vida. Eventualmente, ela vai colidir em algo e isso será o fim da vida. Antigamente, apenas Deus tinha o controle da manivela da locomotiva, isto é, o controle sobre a vida das pessoas. No entanto, o Velho Charlie (Charles Darwin), precursor da teoria evolucionista, roubou essa manivela ao determinar cientificamente a origem e o caminho da humanidade pela seleção natural.

A letra conta que os filhos e a mulher adúltera eventualmente pulam para fora da locomotiva, ficando nas estações. Ou seja, o homem vê seus laços familiares se pulverizarem à medida em que seus entes próximos desembarcam da sua vida. Até que ele fica sozinho e com medo da morte que se aproxima. No entanto, em meio ao silêncio uivante, ele nota os anjos caídos, ou seja, aqueles que duvidaram do Criador. Ele então pega a bíblia de Gideão. Um parênteses aqui.

Gideão aparece na bíblia no Livro dos Juízes. Ele era um herói militar que eventualmente esteve diante da presença do anjo de Deus e na ocasião indagou se o anjo representava de fato a vontade de Deus. Através de três milagres (um que fez o fogo subir a partir da rocha, outro que fez o orvalho recair sobre o velo e não ao redor e o terceiro que fez o contrário, o orvalho recair ao redor e não sobre o velo), Gideão obteve do anjo a prova da vontade de Deus.

Ao consultar os ensinamentos de Gideão, o homem reforça sua crença em Deus como detentor da manivela da locomotiva. Seja Deus ou o Velho Charlie no controle da manivela, a única certeza absoluta é que a locomotiva não vai desacelerar, isto é, a morte será inevitável. No entanto, o que está em jogo é como o homem lida com a morte inevitável. O cristianismo tem uma explicação acolhedora, na medida em que implica a salvação no pós-vida, ainda que a certeza da salvação não esteja dada. Por outro lado, no evolucionismo não existe salvação. A morte é o fim, e o mundo seguirá com outros seres o habitando em seu lugar. Então para quem teme a morte, acaba sendo muito mais reconfortante crer na salvação, e portanto, em Deus.

Wind Up

Ian Anderson
When I was young
and they packed me off to school
And taught me how not
to play the game

I didn't mind
if they groomed me for success
Or if they said
that I was just a fool

So I left there in the morning
with their God tucked underneath my arm
Their half-assed smiles
and the book of rules

And I asked this God a question
and by way of firm reply
He said "I'm not the kind
you have to wind up on Sundays"

So to my old headmaster
and to anyone who cares
Before I'm through
I'd like to say my prayers

I don't believe you
You had the whole damn thing all wrong
He's not the kind
you have to wind up on Sundays

Well, you can excommunicate me 
on my way to Sunday school
And have all the bishops
harmonize these lines

How do you dare tell me
that I'm my father's son
When that was just
an accident of birth

I'd rather look around me,
compose a better song
'Cause that's the honest
measure of my worth

In your pomp and all your glory
you're a poorer man than me
As you lick the boots
of death born out of fear
Quando eu era jovem 
e eles me mandaram pra escola 
e me ensinaram a como não 
jogar o jogo

Eu não me importava 
se eles iriam me preparar para o sucesso 
ou se diriam 
que eu era só um idiota

Então eu sai de lá de manhã 
com o Deus deles enfiado debaixo do meu braço 
o sorriso meia-boca deles 
e o livro de regras

E eu fiz a este Deus uma pergunta 
e por meio de uma resposta firme 
Ele disse "Eu não sou do tipo 
que você tenha de dar corda aos domingos"

Então ao meu velho diretor 
e a qualquer um que se importar
antes de eu seguir 
eu gostaria de fazer minhas orações

Eu não acredito em vocês 
vocês entenderam a coisa toda errada
Ele não é do tipo 
que você tem de dar corda aos domingos

Bem, vocês podem me excomungar 
da escola de domingo 
e fazer com que todos os bispos 
se alinhem com esses termos

Como ousam me dizer 
que eu sou o filho do meu pai 
quando isso foi apenas 
um acidente de nascimento? 

Eu prefiro olhar ao meu redor, 
compor uma canção melhor, 
porque essa é a honesta 
medida do meu valor

Em sua pompa e em toda a sua glória 
vocês são mais pobres do que eu 
uma vez que vocês lambem as botas 
da morte por puro medo

"Wind Up", dentre outros significados no inglês, também é um termo usado como sinônimo de dar conclusão a algo. É a última faixa. E a última premissa do álbum é retomada aqui. Na premissa, Ian Anderson diz que seria bom que o homem percebesse o Espírito de Deus. Nessa faixa, ele conta a sua experiência pessoal sobre como ele O percebeu. Tendo sido desde pequeno religiosamente doutrinado, certo dia ele falou abertamente com o Deus que ele sentiu e ouviu a inusitada resposta de que esse Deus não fazia questão de ser idolatrado sempre aos domingos. Tomando aquilo como uma resposta muito verdadeira, ele passou a questionar o entendimento dos intérpretes da fé. O Deus que eles pregavam não era tão real quanto o Deus que ele sentia.

Então a ficha cai. Ele não é o mero filho de fulano. Ele é ele, com personalidade própria. Ele não pode ser visto como um conjunto de valores premoldados pela Igreja apenas pelo acidente do seu nascimento. Então ele percebe que pobres são os homens que continuam presos a esses dogmas por acharem iludidamente que assim estarão salvos no pós-vida, quando na verdade eles temem diariamente a morte tal como todos os demais homens. No final das contas, essa é uma canção sobre rebelar-se a essa maneira autoritária de enxergar o mundo e ao mesmo tempo construir uma visão própria e alternativa dele.

Considerações Finais

Apesar de não ser um álbum conceitual, Ian Anderson quis trabalhar com premissas que norteariam a sua visão sobre Deus ao longo de várias faixas do álbum. As premissas trazem a noção de que as instituições religiosas com o passar do tempo reinterpretaram a bíblia criando outros Deuses à medida em que as denominações religiosas se distinguiam entre si, especialmente no cristianismo. E essas reinterpretações plantaram a desigualdade no mundo e endossaram práticas que são claramente desestimuladas pela bíblia. Os homens são levados a crer num Deus que representa um conjunto de valores, mas eles não sentem esse Deus. Não há uma conexão espiritual. Então Anderson termina as premissas ressaltando ser fundamental os homens perceberem que o Espírito de Deus habita no interior de todos os homens. E o próprio Anderson conta sobre sentir o Espírito de Deus em "Wind Up".

Consta que o álbum foi mal recebido por comunidades religiosas na região sul dos Estados Unidos, mas de um modo geral os religiosos entenderam que o álbum não é antiDeus, mas sim contra o que as instituições religiosas do establishment fazem em nome da crença do Deus deles. E o fato de existirem várias denominações tentando explicar um único Deus reforça a ideia de que o homem não tem total compreensão do que é Deus. E justamente por essa compreensão ser falível é que as crianças não deveriam ser obrigadas a seguir a mesma religião de seus pais, mas sim deveriam ser livres para encontrar o entendimento de Deus que mais fizesse sentido a elas. Essa talvez seja a mensagem principal do álbum que o Ian Anderson tentou passar, especialmente por ter sido uma dificuldade que ele mesmo experimentou na juventude.

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